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Mostrando postagens de agosto, 2008

Portão Doméstico

Chove forte. Chove. Tão intensamente como o ritmo em que meu sangue pulsa enquanto eu termino minhas malas. No espelho eu observo meus lábios ressecados, descoloridos e de algum modo eu pareço um pouco mais velha, um pouco mais fria, como a chuva lá fora. Eu respiro profundamente, com cuidado prendo a franja nova em um grampo estampado com a minha cor interna. Mais uma olhada rápida e me vou; desejando descobrir por que estou indo. Entro no carro e respiro o cheiro maturado de almíscar. A chuva embaçou o vidro e minha única preocupação é colocar o som no lugar certo e encher meus ouvidos de uma melodia conhecida que me faz querer berrar ao som do meu próprio ritmo. Isso me tranquiliza durante o caminho molhado. No alto da madrugada eu já estou voando, e a única coisa que eu vejo é um negrume infinito, apesar de o comandante ter avisado que a chuva não nos atrapalhará. E no mais real déjà vu , eu vejo a poltrona vazia e com um grande passo chego mais e mais perto. Meu corpo inteiro s

JTM - 5873

Eu disse uma vez e repito. Odeio dirigir. Não tires conclusões precipitadas a respeito das minhas habilidades. Coordenação me falta um pouco, contudo insuficiente para que eu não possa olhar e pensar ao mesmo tempo. Por isso vou ignorar teu olhar reprovador e sentar ao volante. Eu não quero saber se é julho ou não. Vou baixar o vidro e respirar o ar empoeirado da estrada escura emoldurada de árvores a nossa frente, e partilhar um pouco desse jogo de ciano e amarelo. Discretamente vou-me olhar pelo espelho retrovisor, o jeito como estou sorrindo, porque estas me levando de volta para casa. E mesmo que eu sinta o cheiro do teu cabelo lavado bem ao lado, não posso te encarar, ainda. Eu me volto para o céu limpo e azul elétrico e com os olhos apertados vou fazer força para lembrar a diferença entre estrelas e planetas. Quem brilha mais? Provavelmente eu, iluminada por tua vontade de me levar de volta para casa. E eu posso ver o capô retorcido. “Eles bateram?” Eu pergunto de um jeito idi

Minha Senhora

São pouco mais de três horas. Ela dorme sob o efeito de doses e mais doses de morfina, com o braço estirado ao lado, protegendo-se da perda de mais uma veia e de mais um novo furo na pele já desgastada pelos anos. Eu fico de pé sob o azulejo antigo e desgastado do 179, observando as revistas, e a TV que diverte a si mesma. A enfermeira entra e no silêncio de suas horas mal dormidas, troca novamente o único e gotejante alimento, que pouco a pouco escorre pelo capilar transparente. Sei, graças à vigília, que não é nada além do pâncreas rejeitando todas as bobagens que eu peço, do jeito que só uma neta é capaz, para que ela não coma. É tarde para fingir que não me sinto abalada por estar aqui, no mundo solitário da espera ansiosa de uma morte, como àquela no fim do corredor ontem à noite. E isso me atinge, assim, no simples segundo da queda de uma gota. Eu olho em volta, para o teto alto e a porta de madeira nobre brilhando do polimento diário, com os nervos esperando por algo devastador,