Postagens

confessional

  Quando penso naquele telefonema noturno, sinto raiva e orgulho de mim. Foi tão difícil viver aqueles meses de suspensão. Os dias passando, tão iguais, tão mais confusos do que os todos os últimos que partilhamos. Já não sabia os nomes dos dias, se comi, se vivi. Talvez eu tenha dormido. Talvez tenha morrido, por dentro. Guardei teu nome com quem me guia, pedindo proteção, perdão, salvação. o vazio que ia me consumindo não fazia sentido depois de toda aquela vida turbulenta ao teu lado: a dor de abraçar o abismo caloroso do teu peito não se comparava a nada e por isso mesmo foi preciso intervir. Foi preciso afastar, observar, mudar, cuidar. E tem mais um bocado por fazer segundo dita o manual que não sei por onde anda e nem quais respostas trás. Eu lá sei o que to fazendo, sabe? Se já soube como viver, acho que agora não sei mais.Como alguém imagina que eu possa fazer algo? Mal me sinto eu mesma na maior parte do tempo que é capaz de nem me reconhecer mais. Capaz de já ter me desp...

perdas e danos*

Aos 18 anos tirei minha carteira de motorista, como quase todos os jovens de classe média do meu convívio, mas nunca me ensinaram a como dirigir minha vida. Por isso, aceitei a primeira mão estendida e parti. Fui arrastada de um canto ao outro para aprender a sobreviver ao conteúdo escolar e acadêmico; para saber como me alimentar sozinha; como me virar com uma doença; consertar e usar máquinas úteis, assim como trocar uma lâmpada, uma torneira, um pneu. Eu poderia sobreviver a uma guerra, uma avalanche, um naufrágio, mas quando por fim uma pandemia chegou, eu já estava cansada, cansada de só sobreviver. E quando olho pra trás eu mal posso acreditar em como meu coração responde as dores de outrora. E pela menor fração do segundo seguinte eu percebo novamente que eu consegui, que apesar daquilo que já não lembro, eu continuo aqui. Enquanto criança eu tentava ser forte, mas me escondia em cantos escuros para poder chorar e soluçar e algumas vezes até gritar tudo aquilo que me forçavam a ...

como um oceano

Para Denise Nós nascidas perto do paralelo, filhas de meses quentes, partilhamos muitas coisas menos as preferências climáticas. Enquanto tu, menina praiana da tez dourada, sempre tiveste inclinação para o calor; eu menina enfezada da cara amarrada gosto mais das chuvas e dos locais fechados. E talvez por isso tenhas iluminado tanto a minha vida. Quando atravessaste o Atlântico eu tive medo de todas as loucuras que poderias fazer, mas fostes encontrar o que procuravas e mesmo com todas as intempéries dava para sentir o teu sorriso largo em cada palavra, e eu pensei comigo mesma várias vezes: eu nem devia estar surpresa. Para ser sincera, não sei se te conheço tão bem quanto pensei um dia, mas sinto que me conheces melhor do que eu mesma. Talvez porque eu só seja boa em me esconder de mim. Já te vi mudar várias vezes, entre países e “idiomas”, mas sempre tem alguma burocracia, uma melancolia ou uma pia cheia de louça te esperando. E em todas as visitas que fiz, nas tuas três casas dife...

espiral

Viro na direção do barulho e meu corpo enrijece. Já sentiste uma fisgada na parte de trás do pescoço? Pois imagine a mesma sensação pelo corpo inteiro. Ser atravessada bem ali, naquele espaço de tempo no qual te reconheço e perco a noção de que fiquei parada no meio da via.   Sacudo os braços devagar me desfazendo da tensão e retomando os passos, pensando se foste capaz de perceber como me senti. Minhas mãos estão geladas e acho que não estou respirando direito. Será que vou vomitar? Minha boca amarga e sinto alguma coisa ácida no fundo da garganta.  Se eu pudesse sumir, desaparecer, me camuflar na paisagem, eu faria. E isso faz eu me lembrar de quando te abracei por trás daquela vez, e viraste pra mim, não assustado, mas indiferente, como se aquele pequeno gesto fosse desnecessário, invisível aos teus olhos duros e distantes.  Viro mais uma vez pra ter certeza de que não é minha imaginação, mas lá estás tu olhando na minha direção com a cabeça inclinada enquanto o b...

dos elos

Abro o portão e vejo o carro cinza estacionado; já sei que me espera. Abro as grades devagar ouvindo o estalo do cadeado ecoar pela sala vazia. Ando rápido pelo chão de pedra a fim de subir as escadas, mas mal alcanço o primeiro degrau e ouço meu nome ser chamado.  Meu rosto se retorne de um jeito que não posso ver e penso pela milionésima vez como seria se eu não fosse tratada como um objeto de posse: só mais um elo na tua Cartier. Se houvesse uma migalha de respeito ou um grão de confiança compartilhada nessa relação, será que se romperiam os grilhões? Seria possível andar a ermo sem me preocupar se já atingi toda a extensão das correntes? Precisaria ainda voltar para a torre de concreto armado para ser vigiada e controlada assim que abro os olhos? Sigo pelo corredor escuro até avistar a cadeira de madeira talhada. A majestade me observa por detrás dos óculos antes de dizer qualquer coisa. Me sirvo de um copo d’água na intenção de desviar daquele olhar e aguardo o discurso de que...

BEL/SBBE

Está frio. Gelado pra ser exata. É a primeira sensação que tenho ao passar pela porta de vidro automática. Ando pelo granito brilhoso toda feliz e ansiosa, pensando em todas as piadas e comentários que guardei pra esse momento. Todas envolvendo algo que vivemos sabe-se lá Deus quantos anos atrás. Mal sabe ele que essas lembranças me deram forças quando mais precisei. Observo o saguão enquanto subo pelas escadas rolantes. Há pessoas pra lá e pra cá puxando ou empurrando volumes, mas eu procuro apenas por aqueles com bolsas de colo, segura de que verei alguma logomarca Nikon. Um sujeito encostado no parapeito do outro lado me chama atenção. Nas mãos ele segura um telefone de flip quadradíssimo que o denuncia. Achei. Sigo ao seu encontro, mas agora bem, bem devagar. E lentamente vou anotando todas as pequenas diferenças que vejo ao observá-lo. Ele levanta a cabeça num movimento que declara que ele também está procurando algo. Levanto os braços e aceno, esperando que ele note. “olha pra cá...

buraco de alfinete

Tu embalas a rede com os pés, mantendo os olhos fechados.  Tenho uma vontade louca de te esmagar num abraço. Me aninho ao teu lado sem dizer nada. Logo sinto tua respiração quente nos meus cabelos e penso nesse segredo que quero te contar. Hum-hum. De quando, no escuro dos meus pensamentos... eu te sinto nas minhas digitais e minha mente gira loucamente com imagens que mais parecem saídas de um livro de olho mágico – tão extraordinárias quanto os segundos luminosos do meu corpo em êxtase. Será que lembras? Daquele momento no qual te pedi abrigo e a luz incandescente dos teus olhos marcou minhas retinas límpidas, feito o flash daquela Canon cinza antiga. Sabes, às vezes preciso te dizer que era tudo real. Nunca precisei falsear os reflexos brilhantes das curvas dançantes na minha mente. Até agora, nesse momento de calmaria, enquanto a tarde atravessa as frestas... minha cabeça se enche de borrões coloridos. Lembras? Das nossas pernas entrelaçadas na sombra que a cortina produzia naq...