- Latejante -

Eu sei que meus pés doem, mas eu ignoro. Eu sei que o eco dos meus passos no corredor vazio dói na minha cabeça, mas eu passo por cima dela. Eu sei que o estalo da porta - que parece ser dez vezes maior do que o normal - dói nas minhas têmporas, mas quase não sinto, pois já não tenho medo da dor, eu já experimentei tanto dela ultimamente que é praticamente normal agora.
Eu estou encarando a sala do apartamento, tudo o que você tocou ainda está lá, jogado, derramado. Aberto, exposto para ser tomado pelo tempo. E suas digitais parecem evidências de uma cena de Law&Order, tão imóveis e perfeitas na camada tripla de pó.
Eu quero tocar, quero tanto que dói, mas eu não sinto, porque a dor é a mesma sempre.
Mas eu não me permito triscar em nada que seja teu, porque é tudo evidência de nós. Significa tudo. Bem, meio que. Corrobora a existência.
Ainda com medo eu dou alguns passos e aperto o botão, a luz verde acende e o disco gira solitário. Eu deslizo o braço e delicadamente posiciono a agulha sobre as linhas e o som forte e ruidoso surge no auto falante.
Eu olho sozinha ao redor, dou meia volta no mesmo lugar e é como se eu estivesse dançando com você nessa velha sala, nessa velha casa, cheia de histórias que doem. Eu danço com as lembranças, os medos, o desespero e todos os outros sentimentos que dão voltas em mim a cada segundo que o relógio marca. Rodopio relembrando cada detalhe microscópico dessa vida, tua marca de cigarro, teu perfume, tuas roupas de linho, tua letra firme, tuas palavras sábias, cada pedaço dessa casa que indica a tua presença, mesmo que não tenha ninguém aqui, agora que você se foi.
Apenas eu mesma, constatando o fato de que você se foi para sempre. E nenhuma das minhas lágrimas ou promessas te trará de volta.
Apenas eu mesma deixando a mesma dor de sempre ser o único som que eu ouço através das camadas de pó que indicam o tempo que me separam de ti.
Apenas eu mesma observando os padrões da madeira que eu ouso limpar quando afundo no chão.
Apenas eu mesma decidindo que eu não posso lutar contra a dor, porque agora ela é tudo o que eu conheço, tudo o que eu sou, tudo o que tenho. E preciso descobrir como seguir em frente.


Shelhass
Baseada na música Now That You’re Gone por Ryan Adams e extraído do prólogo do romance Como Salvar Uma Vida por Sheila de Sena (codinome Eu).
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Só para constar, eu vou tentar postar esse livro no outro blog, com mudanças minimas, mas não vou prometer nada, porque as vezes eu sinto que eu fico postando para o vento, então se eu sentir que ninguém vai ler, eu paro, ok?
E agora vocês podem fazer seus pedidos na barra de rolagem ai do lado na caixinha.
Inté.