entre laços

Saio de casa nervosa. Ponho os óculos escuros que estão com as lentes arranhadas só para ter algo que esconda meu olhar. Vou andando apressada, mascarando a ansiedade com passos largos e amarrando meus cabelos de qualquer jeito, pois há muita tensão nos meus braços e não consigo me importar em como me pareço nesse momento – só quero que isso acabe.
Os ruídos de um domingo festivo me atingem, mas não consigo prestar atenção à musica, pois minha mente está inundada por pensamentos revoltos com o rosto dele. Meu corpo estremece e dou uma risada irônica pensando em quantas vezes minha pele já reagiu loucamente ao toque, ao cheiro, à proximidade dele. Não me entenda mal, eu não o quero de volta. Não depois de ter assistido nosso relacionamento se deteriorar lentamente feito o teto e as paredes que dividimos naqueles anos. Não, não mesmo. Mas minha mente segue imaginando... 
Mas chega disso! – grito mentalmente balançando os braços no ar como se estivesse curtindo o show que acontece logo ali. Aproveito o momento e compro uma grande quantidade de cerveja na esperança de entorpecer a cabeça antes de perdê-la. Não dá tempo.
Ele chega ao ponto de encontro e entro no carro sem encará-lo. Ele faz alguma piada sem graça sobre minha bebida e eu respondo mal criada, como se já não tivéssemos vivido essa cena tantas outras vezes, e nesses breves segundos não parece como se o peso dos últimos anos ou as palavras que dissemos na última ligação estivessem em nossos ombros.
Mas o momento se desfaz quando meus olhos encontram traços de outra pessoa pelo tapete, perto do painel, no console... e então me recordo de como ele me emboscou em velhas memórias para me dizer que me substituíra por outra e como se a sandália de nós coloridos e as ligas de cabelo não fossem o suficiente, uma mensagem surge na tela do celular e ele prontamente responde, inclinando o aparelho para que eu não veja.
Não, eu definitivamente não o quero de volta, penso enquanto bebo longos goles da minha cerveja fria e amarga... 
- Já?! Podemos?! – pergunta ele de repente, cortando as imagens rodopiando pelos meus neurônios. Entrego as chaves e digo tudo o que é necessário para acabarmos de vez com essa interação e fecharmos pra sempre essa porta que não para de se abrir com questionamentos dos dois lados, como se ambos não conseguissem parar de espiar entre a fresta aberta. Mas não suporto mais esses protocolos engessados de comunicação e rancor que se misturam na nossa separação, enquanto um filme cheio de interrogações passa pelas minhas ondas cerebrais, martelando as sandálias repousando ali ao lado dos meus pés...
Eu o olho diretamente sem dizer nada e me pego questionando novamente como pude amá-lo tão intensamente ao ponto de entrelaçar toda a minha vida na dele, a ponto de doar não só tempo e dinheiro, mas minha alma, sem supor que algum dia não haveria nada a não ser uma sensação pegajosa de náusea ao vê-lo com outra pessoa.
Não, eu não o quero de volta. Mas é difícil imaginar outra coisa nesse exato momento. 

shelhass, abril de 2023
Baseada na música Somebody Else por The 1975.

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