Cidade das Mangueiras

Correr sob o calor abrasador dessa cidade úmida e abafada me faz sentir estranhamente fora do lugar. Logo eu que julgava saber o significado do calor, sempre me descubro pensando “diabos de cidade quente!”. O reflexo do sol no chão cimentado tenta me cegar e o suor que escorre teima em me fazer parecer a pessoa mais desajeitada nesse final de tarde sufocante.
Por um segundo eu praguejo contra a mãe natureza, embora no segundo seguinte esqueça completamente tudo ao avistar o início do muro de tijolos pintados em vermelho-terroso e sou inundada por pensamentos otimistas e motivadores que dizem: um passo a mais e uma inspiração profunda a menos. Estou chegando.
Eu dobro a esquina e logo meus passos alcançam a soleira branca da porta marrom; desses marrons de madeira de lei antiga e pesada, dessas portas que parecem proteger os séculos que passam. A soleira branca da porta marrom da tua casa. Onde meu coração encontrou um lar.
Ele se agita no peito e minhas mãos só faltam nadar no próprio suor. Eu tento recuperar o fôlego e sinto o rosto ardendo, não sei se pelo calor ou pela correria da minha caixa torácica. Eu ando de um lado para o outro tentando controlar a ansiedade. Sempre tão boba.
Te peço mentalmente que perdoe esse jeito meu. Algumas vezes sou tomada pela enormidade do que isso significa e não sei ao certo se consigo imaginar um momento em que nós dois não cabemos como um só. O que posso fazer se os teus passos fazem a trilha do meu caminho, e a tua morada é o meu refúgio?
Eu abro a porta e entro o mais silenciosamente possível. Entro no lavabo da sala e lavo as mãos, jogo água no rosto. São duas manchas vermelhas nas laterais do meu rosto. Parece uma reação alérgica, mas sei que é o calor. O calor impiedoso dessa tua terra.
De uma temperatura tão alta que às vezes tenho vontade de te dizer que não fui feita para viver numa estufa. Mas esse segredo não preciso te contar por que minha pele denuncia e em troca teus pelos se eriçam para dizer que estamos quites já que não te cai bem o frio cortante de onde venho.
O clima tenta nos abalar, mas atravessamos as estações como um tempo bom; céu aberto, sol forte e pancadas de chuva no fim da tarde. Feito o som que ouço das árvores balançando do lado de fora, anunciando a água que cai do céu religiosamente pelo menos uma vez ao dia, logo que o sol se põe.
Eu entro no quarto escuro, cortinas pesadas bloqueiam o resto da luz de fora e o único barulho que ouço é o som do ventilador girando e a tua respiração baixa e lenta. Eu te observo soltar o ar devagar e penso que essa é uma das coisas que vou sentir falta quando tiver que partir.
Balanço a cabeça uma vez para afastar o pensamento negativo e me deito de frente pra ti, me encaixando no espaço entre os teus braços e os nossos sonhos, certa de que ao fechar os olhos, eu acordo para uma vida só nossa, sem barreiras idiomáticas ou oceanos de distância.
Tu soltas o ar novamente e de olhos fechados me perguntas: 
- Já voltou? 
- Yes – eu respondo simplesmente. 
- Já está tudo pronto? 
- Yes – repito. 
- Já temos que ir?
- Yes – só e nada mais. 
Ele solta o ar novamente, os olhos fechados. É um suspiro. E eu aproveito a deixa e o pouco de tempo que nos resta para abraçá-lo por inteiro, um abraço aconchegante, para dividir tudo o que tenho, porque ele vale tudo isso. Inclusive o peso dessa palavra que ainda não entendo, mas respeito. Essa saudade. 

shelhass, escrita original em 2014 
Baseada na música Yes and nothing less por Tiago Iorc.

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