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como um oceano

Para Denise Nós nascidas perto do paralelo, filhas de meses quentes, partilhamos muitas coisas menos as preferências climáticas. Enquanto tu, menina praiana da tez dourada, sempre tiveste inclinação para o calor; eu menina enfezada da cara amarrada gosto mais das chuvas e dos locais fechados. E talvez por isso tenhas iluminado tanto a minha vida. Quando atravessaste o Atlântico eu tive medo de todas as loucuras que poderias fazer, mas fostes encontrar o que procuravas e mesmo com todas as intempéries dava para sentir o teu sorriso largo em cada palavra, e eu pensei comigo mesma várias vezes: eu nem devia estar surpresa. Para ser sincera, não sei se te conheço tão bem quanto pensei um dia, mas sinto que me conheces melhor do que eu mesma. Talvez porque eu só seja boa em me esconder de mim. Já te vi mudar várias vezes, entre países e “idiomas”, mas sempre tem alguma burocracia, uma melancolia ou uma pia cheia de louça te esperando. E em todas as visitas que fiz, nas tuas três casas dife

espiral

Viro na direção do barulho e meu corpo enrijece. Já sentiste uma fisgada na parte de trás do pescoço? Pois imagine a mesma sensação pelo corpo inteiro. Ser atravessada bem ali, naquele espaço de tempo no qual te reconheço e perco a noção de que fiquei parada no meio da via.   Sacudo os braços devagar me desfazendo da tensão e retomando os passos, pensando se foste capaz de perceber como me senti. Minhas mãos estão geladas e acho que não estou respirando direito. Será que vou vomitar? Minha boca amarga e sinto alguma coisa ácida no fundo da garganta.  Se eu pudesse sumir, desaparecer, me camuflar na paisagem, eu faria. E isso faz eu me lembrar de quando te abracei por trás daquela vez, e viraste pra mim, não assustado, mas indiferente, como se aquele pequeno gesto fosse desnecessário, invisível aos teus olhos duros e distantes.  Viro mais uma vez pra ter certeza de que não é minha imaginação, mas lá estás tu olhando na minha direção com a cabeça inclinada enquanto o braço de uma mana qu

dos elos

Abro o portão e vejo o carro cinza estacionado; já sei que me espera. Abro as grades devagar ouvindo o estalo do cadeado ecoar pela sala vazia. Ando rápido pelo chão de pedra a fim de subir as escadas, mas mal alcanço o primeiro degrau e ouço meu nome ser chamado.  Meu rosto se retorne de um jeito que não posso ver e penso pela milionésima vez como seria se eu não fosse tratada como um objeto de posse: só mais um elo na tua Cartier. Se houvesse uma migalha de respeito ou um grão de confiança compartilhada nessa relação, será que se romperiam os grilhões? Seria possível andar a ermo sem me preocupar se já atingi toda a extensão das correntes? Precisaria ainda voltar para a torre de concreto armado para ser vigiada e controlada assim que abro os olhos? Sigo pelo corredor escuro até avistar a cadeira de madeira talhada. A majestade me observa por detrás dos óculos antes de dizer qualquer coisa. Me sirvo de um copo d’água na intenção de desviar daquele olhar e aguardo o discurso de quem ju

BEL/SBBE

Está frio. Gelado pra ser exata. É a primeira sensação que tenho ao passar pela porta de vidro automática. Ando pelo granito brilhoso toda feliz e ansiosa, pensando em todas as piadas e comentários que guardei pra esse momento. Todas envolvendo algo que vivemos sabe-se lá Deus quantos anos atrás. Mal sabe ele que essas lembranças me deram forças quando mais precisei. Observo o saguão enquanto subo pelas escadas rolantes. Há pessoas pra lá e pra cá puxando ou empurrando volumes, mas eu procuro apenas por aqueles com bolsas de colo, segura de que verei alguma logomarca Nikon. Um sujeito encostado no parapeito do outro lado me chama atenção. Nas mãos ele segura um telefone de flip quadradíssimo que o denuncia. Achei. Sigo ao seu encontro, mas agora bem, bem devagar. E lentamente vou anotando todas as pequenas diferenças que vejo ao observá-lo. Ele levanta a cabeça num movimento que declara que ele também está procurando algo. Levanto os braços e aceno, esperando que ele note. “olha pra cá

buraco de alfinete

Tu embalas a rede com os pés, mantendo os olhos fechados.  Tenho uma vontade louca de te esmagar num abraço. Me aninho ao teu lado sem dizer nada. Logo sinto tua respiração quente nos meus cabelos e penso nesse segredo que quero te contar. Hum-hum. De quando, no escuro dos meus pensamentos... eu te sinto nas minhas digitais e minha mente gira loucamente com imagens que mais parecem saídas de um livro de olho mágico – tão extraordinárias quanto os segundos luminosos do meu corpo em êxtase. Será que lembras? Daquele momento no qual te pedi abrigo e a luz incandescente dos teus olhos marcou minhas retinas límpidas, feito o flash daquela Canon cinza antiga. Sabes, às vezes preciso te dizer que era tudo real. Nunca precisei falsear os reflexos brilhantes das curvas dançantes na minha mente. Até agora, nesse momento de calmaria, enquanto a tarde atravessa as frestas... minha cabeça se enche de borrões coloridos. Lembras? Das nossas pernas entrelaçadas na sombra que a cortina produzia naquele

entre laços

Saio de casa nervosa. Ponho os óculos escuros que estão com as lentes arranhadas só para ter algo que esconda meu olhar. Vou andando apressada, mascarando a ansiedade com passos largos e amarrando meus cabelos de qualquer jeito, pois há muita tensão nos meus braços e não consigo me importar em como me pareço nesse momento – só quero que isso acabe. Os ruídos de um domingo festivo me atingem, mas não consigo prestar atenção à música, pois minha mente está inundada por pensamentos revoltos com o rosto dele. Meu corpo estremece e dou uma risada irônica pensando em quantas vezes minha pele já reagiu loucamente ao toque, ao cheiro, à proximidade dele. Não me entenda mal, eu não o quero de volta. Não depois de ter assistido nosso relacionamento se deteriorar lentamente feito o teto e as paredes que dividimos naqueles anos. Não, não mesmo. Mas minha mente segue imaginando...  Mas chega disso! – grito mentalmente balançando os braços no ar como se estivesse curtindo o show que acontece logo al

chuva ligeira

Eu vim te olhando por entre meus cabelos. Pelas estantes de livros. Eu vim te olhando por entre as pessoas na fila. Eu simplesmente vim te olhando.  Silenciosamente meus olhos vem te pedindo que me olhes de volta. Silenciosamente meus olhos encontram os teus. Eu simplesmente desejo que vejas o que eu vejo. ... Veja. Em meus olhos eu te conto segredos. Conto-te histórias que ninguém mais sabe. Faço-te promessas que ninguém mais ouve. Ofereço-te o que precisas. Confesso-te...  ...  E por fim eu desvio o olhar, para que o segredo seja só meu novamente. E por fim eu escondo o que sinto para que não possas usá-lo contra mim. Silenciosamente te dou o primeiro e o último abraço. Silenciosamente te dou o primeiro e o último beijo. Eu simplesmente te dou adeus. ... Tu sorris. Tua boca me diz para não ter medo, que não há dor. Tua boca me diz para não sentir nada. Tua boca fala apenas do que está por vir. Tudo o que podes me dar, tudo o que eu quiser. ... E por fim te dou as costas, ignorando tu