dos elos

Abro o portão e vejo o carro cinza estacionado; já sei que me espera. Abro as grades devagar ouvindo o estalo do cadeado ecoar pela sala vazia. Ando rápido pelo chão de pedra a fim de subir as escadas, mas mal alcanço o primeiro degrau e ouço meio nome ser chamado. 
Meu rosto se retorne de um jeito que não posso ver e penso pela milionésima vez como seria se eu não fosse tratada como um objeto de posse: só mais um ato na tua Cartier. Se houvesse uma migalha de respeito ou um grão de confiança compartilhada nessa relação, será que se romperiam os grilhões? Seria possível andar a ermo sem me preocupar se já atingi toda a extensão das correntes? Precisaria ainda voltar para a torre de concreto armado para ser vigiada e controlada assim que abro os olhos?
Sigo pelo corredor escuro até avistar a cadeira de madeira talhada. A majestade me observa por detrás dos óculos antes de dizer qualquer coisa. Me sirvo de um copo d’água na intenção de desviar daquele olhar e aguardo o discurso de quem julgar e sentencia num mesmo movimento.
As acusações de costume se seguem e escuto tudo como se ainda fosse a primeira vez, pois machucam da mesma forma, na mesma intensidade. Baixo a cabeça como se aceitasse a punição ou estivesse envergonhada da minha conduta, mas é apenas para esconder as veias da minha temporada pulsando, pois não é possível que não se veja no meu rosto o quanto já não consigo mais. Já não suporto mais andar de cabeça erguida só para carregar o peso das expectativas alheias, pairando sobre mim feito um abutre feroz.
Faço uma cortesia antes de me retirar em silêncio com um sorriso torto que escorre assim que viro as costas em lágrimas. Volto pela mesma passagem, pensando em como ainda posso ver as linhas cintilantes nos meus pulsos, marcas dos teus ferros, mas não sinto o peso das amarras. Subo as escadas e as correntes não fazem sequer um ruído na noite quente. Subo imaginando como seria se eu atravessasse os muros e nunca mais voltasse. Se eu fosse à caça do mundo, me daria ele uma recompensa? Poderia eu reinar sobre minhas próprias escolhas; enxergar o horizonte com minhas próprias lentes?
Quero ser livre, quero estar só. Quero subir no maldito cavalo selado de que tanto falas e sumir pelo vento, sem rastro, sem dono. Só eu e o que é meu.
 Vossa Majestade não permitiria, mas hoje mesmo já estou liberta e hei de seguir no meu caminho, pois não me deixarias ir, não me deixarias ser. 

shelhass, escrita original em abril 2023 (editado em 08/05/2024)
Baseada na música Hunter por Dido.

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