perdas e danos*

Aos 18 anos tirei minha carteira de motorista, como quase todos os jovens de classe média do meu convívio, mas nunca me ensinaram a como dirigir minha vida. Por isso, aceitei a primeira mão estendida e parti.
Fui arrastada de um canto ao outro para aprender a sobreviver ao conteúdo escolar e acadêmico; para saber como me alimentar sozinha; como me virar com uma doença; consertar e usar máquinas úteis, assim como trocar uma lâmpada, uma torneira, um pneu. Eu poderia sobreviver a uma guerra, uma avalanche, um naufrágio, mas quando por fim uma pandemia chegou, eu já estava cansada, cansada de só sobreviver.
E quando olho pra trás eu mal posso acreditar em como meu coração responde as dores de outrora. E pela menor fração do segundo seguinte eu percebo novamente que eu consegui, que apesar daquilo que já não lembro, eu continuo aqui.
Enquanto criança eu tentava ser forte, mas me escondia em cantos escuros para poder chorar e soluçar e algumas vezes até gritar tudo aquilo que me forçavam a engolir com o nariz tampado, goela abaixo. “Se vomitar vai ser pior”. E agora após a queda dos muros e do colapso das promessas, eu vejo que vocês todos não se importam, não me importam, não tem nenhum significado.
Pois quando olho pra vocês eu mal posso acreditar em como meu coração responde as lembranças de outrora. E pela menor porção do segundo limite eu percebo novamente que eu consegui, que apesar do que me ofertam, eu não preciso mais ficar aqui.
Será que não é possível entender, por que eu não quis ser mãe tão jovem e ter que segurar em tão pequenas mãos e tentar encontrar sentido nos destroços da torre derrubada aos nossos pés? Como alguém poderia me exigir isso?! Como alguém poderia me acusar de destruir o futuro alheio – só importa o futuro dos filhos homens?
Meu futuro me espera logo ali no cruzamento, nos pontos de ônibus a seguir, pois o voo segue atrasado. Então me soltem, não veem que tudo já passou? Já se foi, não existe. Está perdido, está morto. 
Mas quando olho pra mim eu mal posso acreditar em como meu coração responde às cicatrizes de outrora. E pela menor porção do meu pulsar, eu percebo novamente que eu consegui, que apesar de tudo o que perdi, finalmente posso sorrir. 
Sim, eu sempre soube como sorrir. 
Pois nos meus sonhos de criança, eu podia ser eu mesma.

shelhass, escrita original em julho, 2022 (editado em 18/11/2024)
Livremente baseada na música The Suburbs por Arcade Fire

*título que era provisório e acabou ficando

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